João Pessoa, 21 de fevereiro de 2025 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Eu nasci ali

Comentários: 0
publicado em 21/02/2025 ás 07h00
atualizado em 20/02/2025 ás 18h59

Eu  nasci ali mas, decerto, alguma coisa errada havia em mim. Na primeira vez que montei em um jumento, o bicho maluvido, com sede, baixou a cabeça e eu, malamanhado, caí na água rala do Riacho Pé de Serra.

Não tenho sorte com jumentos. Ao chegar da escola, Panjão mordeu meu rosto, sapateou-me. Não morri porque o bicho tinha as patas cegas, como esses desencapados do juízo que pedem anistia para organizações criminosas.

Eu nasci ali, mas o filho de analfabetos se apaixonou pelas palavras, mesmo que, para sorvê-las, tempestades proparoxítonas tenham se plantado no caminho do monossílabo átono, ainda que ousado e sonso.

Eu nasci ali, pedregulhos, mutucas, marmeleiros e velames. Aroeira, angico e canafístulas. As velas das novenas do mês de maio, tabocas dos fogos cheirando à bufa, a festa de janeiro em Uiraúna, bolas de meias, manzapes de milho, o medo dos caboclos no carnaval.

Eu nasci ali, mas as enxadas e as roçadeiras tiveram raiva de mim. Pesadas ou intolerantes, ficavam embrutecidas, toda vez que eu as olhava de soslaio.

Eu nasci ali, mas as ribanceiras do Riacho Pé de Serra só me serviam para as brincadeiras com os carrinhos feitos de latas de sardinha, não para serem capinadas, muito menos para testemunharem o corte das touceiras de capim.

Eu nascí ali. Um desajustado. Na estiagem, os pés de angicos ficavam de cara amarrada, mas ainda assim, deles eu arrancava um sorriso, a resina e os engolia com gosto e regozijo.

Eu nasci ali. Os pedregulhos me amavam, mas me queriam longe; o vento Aracati aliviava mas, sem vergonha, me repelia, sussurando: “vá embora, menino feio”;

Eu nasci alí. Odiava as mutucas, que queriam sangue; a urtiga, que queimava a pele das minhas pernas. Angu com toucinho frito ou com melado de rapadura, quem haveria de aguentar? A falta deles era pior.

Eu nasci no sítio Saco Sinhazinha, ao pé da Serra do Desterro, no caldeirão de fogo do sertão da Paraíba, município de Uiraúna, hoje do meu querido Santarém (Joca Claudino), lugar onde moram as reticências, o alfa-ômega do sofrimento e dos prazeres.

Saudades, viu?

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB