João Pessoa, 09 de junho de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Segundo Guimarães Rosa, o sertão está em toda parte.
Na tensão transfigurada de sua linguagem, as coisas reais e acontecidas tendem a se transformar em mito, e o sertão também existe dentro da gente. Sobretudo no imo da alma, como diria um poeta romântico, numa geografia translúcida e impalpável, porém, presente, a considerarmos os ricos roçados da emoção e a lavoura encantada da memória.
A faixa de terra, de inóspitos agrestes e de ásperos carrascais, que se estira, alargada, interior adentro, distanciando-se das cores glaucas do litoral, também se distende e se aprofunda pelas escarpas azuladas da imaginação e da sensibilidade, ganhando, assim, contornos simbólicos, possibilidades estéticas e todo um ethos singular que define uma paisagem e um modo de ser. Sertão é ser tão!
Ora, se o Sertão está em toda parte, onde estaria o Cariri? O meu Cariri?
Topopgrafias à parte, o cariri, assim como os remígios úmidos do brejo e o cinza seco do curimataú, está dentro do sertão. Do sertão físico e metafísico, do sertão real e imaginário, do sertão que é de todos e é de ninguém, misturados e cultivados na argila procridora da palavra poética. Seja na movência alagada e verde da sintaxe rosiana; seja na empática, perplexa e delirante oralidade de Zé Lins, o sertão nos habita e nos acompanha como a sombra acompanha o homem, como o homem acompanha a vida, como a a vida acompanha a morte. No seu centro lateja um cariri, isto é, um complexo de léguas anônimas atravessadas pelo uivo despedaçado dos ventos e castigadas pela agra ausência das águas.
O Cariri é o dentro do dentro, cujas fronteiras mágicas se medem pela horizontalidade da solidão, pelos lajedos silenciosos à beira das estradas, pelos marmeleiros, xique-xiques e mandacarus orando em súplicas para o vazio do céu e pelos pequeninos povoados com gosto de deserto e ar de sagração. Se seus dias são quentes, as tardes são frescas. Já no organismo escuro da noite pulsa aquele friozinho que vem não se sabe donde, acariciando as cartilagens do abandono e as membranas da saudade.
O Cariri é o Cariri é o Cariri!
Trago-o comigo como um talismã, um tesouro, uma dádiva, uma deidade. Quer no pensamento, quer na memória, quer na imaginação, quer no sonho, o cariri me tem e me leva. Dos seus magros barreiros e das ruínas leitosas de seus aveloses brotaram-me algumas metáforas acesas e abençoadas pelas luzes de fogo de um sol imperativo e inclemente. Dos seus cremados imbuzeiros e dos seus tórridos riachos fez-se a melodia aguda e cortante de alguns versos desolados. Devo-lhe, então, a folha calcinada da poesia mais bruta e mais terna, a fibra forte da gênese telúrica, o sangue delicado e resistente que não coagula sob as intempéries.
Desde cedo aprendi, na gramática cabocla dos índios cariris, que há, nos lajeiros dessa terra, como diz o poeta Vanildo Brito, no seu “Livro das paisagens”, “emblemas muitos antigos”. Daí, “Eis a Ursa Maior, os santos glifos / e o pé de pai Sumé, assinalados”, a que se junta o insólito vocativo: “Ó pedras de letreiro, sois espelhos / Onde os mitos antigos se inscreveram / Nas cores da amplidão”.
Por isto e por outras íntimas razões, não deixo meu Cariri nem no último pau de arara!
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OPINIÃO - 22/11/2024