João Pessoa, 24 de agosto de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
O corpo continua caindo na imagem guardada. O avião americano partindo do Afeganistão, país da Ásia Meridional, levando 823 pessoas, em voo para salvar habitantes de Cabul da sanha de alucinados talibãs.
Eu não sei em você. Dentro do conjunto de sentimentos que formam a afetividade humana como um todo, o que nos faz sentir essas imagens. Para quem não é desse campo, lembro que todo o nosso psiquismo se estrutura em três pontos: o cognitivo, a psicomotricidade e a afetividade. Aqui estão o humor, os sentimentos e emoções. Sei que alguma coisa nos envolve; mas, para descrevê-la, é preciso lançar mão de metáforas ou alguma coisa mais.
Vejo que lanço mão do mais potente mecanismo de proteção do eu: a negação. Primeiro, não sabemos quem caiu, um homem, uma mulher, um não binário? Um corpo. Algo quase amorfo. Uma coisa. Coisificação é uma possibilidade que temos de tornar um semelhante em uma coisa. Acho que, a princípio, nos protegemos assim, com algumas variações. Porque, sem nenhum filtro entre nós e as imagens virtuais que nos trazem esses fenômenos de realidade, estaríamos todos emocionalmente vilipendiados. Vencidos pela sucessão de choques.
A ex-capitã da seleção de futebol, Khalida Popal, exilada na Dinamarca, implorou para que suas colegas se desfaçam, queimem, joguem fora, os uniformes. Apaguem nomes, destruam suas identidades de jogadoras, deletem as redes sociais. Apelo dela que fundou a organização Girl Power dedicada ao empoderamento de meninas e jovens através do esporte. Em sua fala, lamenta pedir para que apaguem sua própria história. “É doloroso para mim alguém como ativista e fez todo o possível para conquistar e ganhar essa identidade como jogadora da seleção feminina […]. Representar o nosso país, quanto nos orgulhamos!” Apagar histórias. Queimar os símbolos da sua profissão. Renegar sua identidade. Meter-se numa roupa escura e deixar de existir. Pensando bem, e já sem a negação inicial, sinto dor por essas mulheres. Ainda mais quando nos relatam o que esperam: assassinatos, apedrejamentos, estupros. Dor, apenas dor como última quimera.
Pense você, se em meio a um tumulto de pessoas tentando, a todo custo, embarcar num voo que as salvariam, víssemos o rosto de pavor de um jovem jogador da seleção, de 19 anos, Zaki Anwari, despencando-se, ao encontro da morte mais cruel e assassina. Meu filho, seu filho, nosso irmão, são como Zaki, mas têm esperança, profissão, e tantos sonhos; que quem restou no Afeganistão não terá.
Um retoque somente. Não foi a religião dos bons de coração, que provocou o caos. É o resultado de personalidades, politicamente adestradas para o domínio absoluto de um povo; que, para atingir seus objetivos últimos, utilizam-se de códigos tribais e princípios religiosos. Fundamentados, supostamente, na Sharia, seguida pelos que respeitam as bases islâmicas; reinterpretam-na para ser adotada como uma política de Estado absoluto, sem direitos individuais, nem chances.
O final? Vocês sabem: pessoas despencando de um avião. Pedaços de um corpo no encontro com o chão. Sentimentos soltos e inconvenientes, misturados ao que restou de Zaki por aqui.
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OPINIÃO - 22/11/2024