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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Menos é mais

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publicado em 11/02/2022 ás 06h57

Naquela época, os olhos dela ainda enxergavam a vida. Pouca, mas ainda havia luz, embora já escassa pelo glaucoma. Eu passava a semana na cidade e voltava, às sextas-feiras, para o sítio.

No sábado, cedinho, ela me mandava ao povoado de Areias, para comprar a carne. Teria raiva, porque, no meio do caminho, um campo de futebol me obrigava a participar de um jogo disputado, em que eu delirava com o sonho de ser jogador do Botafogo carioca.

A bola na minha perna direita era um grude, e eu era rápido com um beija-flor, muito embora fosse feio como um papa-sebo. Muitas vezes, eu e a bola éramos uma só entidade. A carne, abandonada, ressecava ao sol, pendurada num galho de marmeleiro.

Quando eu chegava a minha casa, já eram onze horas. Mãe estava bravíssima, mas, como sabia que só havia prazer em mim nos finais de semana, ela fingia revolta, mas tudo de mentirinha.

O angu estava preparado. A carne cheirava ao tempero de Neném de Pedro Leite. Manoel Ferreira chegava. Chico Grosso entrava pela porta da sala do meio, com um feixe de capim para a vaca manhosa. Os ciganos haviam se retirado dos arredores. Mãe respirava aliviada, ainda confusa e ciumenta de papai.

Era a semana do Natal, mas isso, ali, ao pé da Serra do Desterro, era algo distante. Sabíamos da nobreza da data pelo rádio velho e pelo almanaque Fontoura (foto) que papai trouxera da farmácia de Oliveira, quando fora à feira de Uiraúna.

A carne ficara pronta. Mãe fazia o prato de papai, que se balançava na rede, na sala da frente. Quem estivesse lá em casa almoçaria: Ana de Veizé, Maroca ou Catita, e Panjão, que sempre estava em alguma casa, na hora do almoço. Sentávamos no chão da cozinha, à beira da porta que dava para o monturo. A panela de angu e a de carne estavam fumegantes. Mãe estava no comando, distribuindo a refeição. Havia mesa, lá em casa, na sala do meio, só ocupada em ocasiões especiais.

Ali, no chão, a simplicidade espichava os olhos para as brisas do riacho Pé de serra, que de tudo participava, numa algazarra de amor. Quem não era feliz?

@professorchicoleite

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