João Pessoa, 11 de novembro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Apaixonei-me pelas letras no dia em que consegui fazer uma garatuja parecida com a letra “a”, na aula de Socorro de Biu, em um papel de embrulhar sardinha, trazida por papai da Bodega de Seu Né.
E quando esse amor chegou, ali, nos anos sessenta, ele veio intenso, como a quentura do Sol que apoquentava meu juízo no pastoreio de algumas reses nos baixios da zona rural daquela cidadezinha de Uiraúna.
Quando essa paixão apareceu, por volta dos meus seis anos, ela começou uma disputa com as peraltices de quem tinha o riacho Pé de Serra aos seus pés, feito de encantamento naquela pequenez de um povoado perdido dentro da solidão do tempo.
A nova musa – aquelas letras e imagens coloridas – quis vencer os antigos amores, mas, como isso era impossível, se deram às mãos em um arranjo inteligente e até hoje vivem em uma algazarra prazerosa de lembranças.
Todos os amores têm suas trovoadas, desavenças, bons encontros, reencontros. Os meus tiveram lutas heroicas. Uma delas, já contada no meu livro “Os longos olhos da espera”, teve por cenário uma lata de querosene da marca Jacaré, em que constava a sigla “Ltda”, um nome muito difícil de soletrar, para quem ainda não vencera o bê-á-bá.
Por aqueles anos, eu acompanhava papai pelas bodegas do povoado com os olhos curiosos pelos papéis de embrulhar, pelas letrinhas de mundos distantes pregadas nas embalagens das mercadorias, até me chegar às mãos a coisa mais bonita que os olhos haviam de comer, a cartilha “Vovô viu a uva”.
Eu não havia conhecido avós e muito menos uva. Uva no sertão cáustico da Paraíba não existia nem em sonhos, mas ainda assim, “vovô via a uva” todos os dias deitado em uma rede, pé na parede, balançando. Eu dormia com aquela cartilha enrolada em mim porque todos sabem: os livros têm o mesmo aroma dos dengos, dos cafunés, do colo maternal, da terra molhada, o cheiro do cangote do Riacho Pé de Serra.
O meu segundo encantamento deu-se quando eu ganhei um lápis. Lápis simples, grafite, lápis comum, tão comum, que eu tive pena de gastá-lo. Guardei-o para oportunidade melhor, caso existisse. Se eu quisesse ser voluptuoso na escrita, havia muito carvão extraído do fogão de lenha da minha casa, ou os gravetos de marmeleiros serviriam aos meus rabiscos, afinal meus cadernos eram feitos de terra, e isso, terra seca, há em abundância no sertão da Paraíba, onde em se plantando letramento, tudo dá.
@professorchicoleite
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