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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Poesia à vista

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publicado em 18/01/2023 ás 07h00
atualizado em 17/01/2023 ás 17h57

 

A epígrafe é de Manoel de Barros (foto), nestes termos: “{…} que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com o balanço do barômetro etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”.

Perfeito!

As epígrafes são sinais de sentido e de significação. Abrem os livros como um eco coral, antecipando seus roteiros semânticos e suas direções temáticas, perspectivas e compromissos do autor e da obra. Também refletem o possível contexto da criação e apontam para as afinidades eletivas daqueles que as escolhe e as transcreve. Em certo sentido, o autor da epígrafe parece conduzir, numa provável pedagogia do estético, o escritor ou o poeta, na consecução individual de sua dicção literária.

Lúcio Mendes Cavalcante não foge a este princípio no gesto de sua estreia, com o livro de poemas, A valsa extemporânea (João Pessoa: SGuerra Design, 2021), já no título demarcando suas zonas ideativas com as noções de ritmo e tempo.

O ritmo poder-se-ia encontrar no movimento interior dos versos, no atrito e no câmbio das palavras dentro do poema, nos paralelismos, imagens e outros recursos retóricos que singularizam a fala poética do autor; o tempo, em sua inarredável presença, mescla as incidências cronológicas, por exemplo, as circunstâncias da pandemia, ao timbre incisivo de sua música metafísica devassando tudo: as coisas, o homem, a natureza.

Lúcio Mendes Cavalcante coloca a sua poética dentro da esfera do tempo, como que assimilando nessa “valsa extemporânea” o mistério mesmo da própria poesia, na sua capacidade única de transmutar o efêmero no duradouro; o banal, no extraordinário; o finito, no infinito.

Seus motivos são os de sempre, os grandes motivos, os motivos permanentes que circulam na tradição da alta poesia ocidental. O fluxo do tempo, os dramas existenciais, o amor, as perdas, a intrínseca reflexão sobre o poético, constituindo sua matéria expressiva, sedimentam, portanto, sua percepção de mundo a partir de um lirismo agudo e meditativo que intensifica e amadurece o nosso olhar sobre a vida.

Em “Gramática do tempo”, poema de abertura, o eu poético enuncia nestes versos: “{…} Poucos adjetivos sobraram na caixa de ferramentas, ∕∕ um par de oxímoros, alguma figura de linguagem ∕ e os substantivos nascem crus e solitários”, para, mais adiante, numa típica e parentética ilação metalinguística, afirmar: “(essa disfunção linguística de ter o transitório ∕ e possuir algo que passa)”. Não seria a verdade da poesia?

Esta “Gramática do tempo”, que não deixa de ecoar os sons difusos de uma outra gramática, “a gramática expositiva do chão”, é uma profissão de fé, não só pela posição topográfica que ocupa no volume, porém, sobretudo, pelo ideário que explora em seus versos longos, brancos e heterométricos.

Se no poema seguinte, “O peso da hora”, os versos finais trazem a voz lírica de Manuel Bandeira, os septissílabos, ou seja, a redondilha maior de extração oral e popular, de “O sentido da pedra e do barro” evocam a cadência cabralina, naquilo que tem de medidos, substanciais e, por assim dizer, aforismáticos, senão vejamos: “A vida é pedra inculta ∕ que o esforço molda, ∕ esculpindo a bruta rocha ∕ com a mão precisa {…} Transcendendo-se o barro ∕ se fabrica a vida: ∕ assombroso artefato, ∕ mais que lama e pedra”.

Heterometria e formas fixas, haicais, sonetos, prosa lírica e fotopoemas são trabalhados por meio de um estilo poético que fala a todos, atento às minúcias essenciais das motivações e avesso ao falso brilho dos hermetismos de ocasião. A inventividade que preside a linguagem poética existe na naturalidade mesma da palavra ritmada, sem afetações nem experimentalismos.

Vejo, em A valsa extemporânea, uma estreia promissora, algo assim como poesia à vista, e, em Lúcio Mendes Cavalcante, natural de Souza (PB), mas radicado em João Pessoa, promotor de justiça e mestre em ciências jurídicas e sociais, um legítimo poeta, cuja sensibilidade artística e domínio da linguagem o insere, sem favor, no mapa histórico da poesia paraibana.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB