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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

A poesia não para!

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publicado em 08/02/2023 às 07h00
atualizado em 07/02/2023 às 18h03

A poesia não para. Em todas as formas, em todos os estilos, de múltiplas temáticas, de várias vertentes, a poesia persiste e resiste, sempre na possibilidade técnica do verso e na esfera ambivalente do poema. De gerações mais antigas, de gerações mais novas e mesmo de novas forças emergentes, a poesia se revela a expressão do mundo, dentro daquele impacto e daquela surpresa que as palavras mobilizam, permitindo, ao leitor, devassar regiões invisíveis e experimentar a beleza e a verdade das coisas e dos fenômenos.

Diria que há momentos puramente experimentais que, se travam o pacto mais íntimo com os valores permanentes da arte poética, relevando sobretudo aquilo que poderia ser a “novidade”, servem, contudo, para depurar a linguagem de seus excessos retóricos, fazendo como que uma espécie de limpeza na geografia dispersa e dispersiva da produção poética. Só que tais momentos envelhecem e passam, e a casa da poesia volta a ser ocupada por valores que ficam enraizados nos apelos mais legítimos da realidade estética. Realidade esta que deve comandar, a partir de intrínseca costura, os fatores de outra ordem que penetram na tessitura do poema, isto é, fatores históricos, ideológicos, culturais, existenciais, míticos e místicos.

Anderson Braga Horta: 50 poemas, traduzidos para o alemão por Curt Meyer-Clason (Brasília: Trampolim, 2021), exemplifica bem o primado de meu raciocínio. Espécie de antologia temática, subdividida nas sessões “Erótica”, “Círculo de família”, “Ser com os outros” e “Limiares”, reúne poemas da vasta e variada obra deste mineiro radicado em Brasília, já consagrado com títulos, como, entre outros: Exercícios do homem (1966); O cordeiro e a nuvem (1984); Pássaro no aquário (1990); Dos sonetos na corda do sol (1999) e Viva voz (2012).

Esta edição bilingue não deixa de ser uma pertinente porta de entrada ao universo lírico de Anderson Braga Horta (1934…), caracterizado, em linhas gerais, pelo domínio dos instrumentos formais do verso, pelo apuro e rigor do vocabulário poético, pela consciência da linguagem e, em outro plano do discurso, pela intensa reflexão existencial acerca de motivos fundamentais, a saber: o amor, o erotismo, o tempo, a solidão e os nutrientes diversos que fazem a travessia da condição humana.

Anderson Braga Horta não é poeta do instantâneo rarefeito, da capilaridade inovadora, das veleidades vanguardistas. Na sua voz lírica impera a inquietação para com o essencial, o desafio de expressar e, quem sabe, compreender, o mistério da criatura humana. Um flash, cristalizado no poema “Olhos”, já sinaliza para tal, senão vejamos: “De repente descubro ∕ a lavada beleza de teus olhos. ∕ (Entre mim e o sono ∕ trazes um sol nos lábios ∕ e nos seios Vênus.) ∕ Teus olhos são como céus que choveram”.

O capixaba Jorge Elias Neto (1964…), talvez mais arisco diante da tradição vocabular e mais atento à heterodoxia das vivências humanas, exercita, em Manual para estilhaçar vidraças (Vitória: Cousa, 2021) uma poética de sondagem da realidade humana em que se vê o toque irônico associado àquele “princípio de corrosão”, entrevisto por Luís Costa Lima na lírica de Carlos Drummond de Andrade.

Este me parece um manual pelo avesso, sutilmente colado às crises existenciais do eu poético, como também ao revés das coisas, captadas no imprevisto e no absurdo que podem configurá-las. Há de um tudo nos seus imperativos antididáticos, a exemplo do “Manual para igualar horizontes”, “Manual para fazer bola de goma de mascar”, “Manual da ´petite mort` como refúgio”, “Manual do ser divino” e, principalmente, do  “Manual sobre manuais”, que arremata o livro, neste tom e nesta perspectiva de sabor metalinguístico: “No fim, resta o desgaste das palavras ∕ empobrecidas pelo reúso,  ∕∕  os retalhos repetidos na colcha ∕ que mal cobre o cansaço dos pés”.

Jorge Elias Neto pertence a uma geração mais nova que a de Anderson Braga Horta, talvez mais condicionada pelo canto de sereia dos modismos experimentais, talvez mais seduzida pelo nonsense poético ou pelo realismo vezes escatológico de certas situações existenciais. No entanto, alguma coisa os aproxima na dinâmica essencial das diferenças estéticas, precisamente aquilo que os irmana na idealidade do verso e na prerrogativa da palavra enquanto máquina mágica de acionar a fantasia do poema. O que ocorre em diversas passagens deste insólito “Manual”, assim como em outros títulos do autor, a exemplo, entre outros, de Rascunhos do absurdo (2010); Os ossos da baleia (2014); Breve dicionário do boxe (2015) e Cabotagem (2016).

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