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“O Mundo é Grande” de Drummond, vira livro ilustrado por artista argentina

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publicado em 05/08/2023 às 11h59
atualizado em 05/08/2023 às 14h03

Kubitschek Pinheiro

Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta brasileiro, teve seu poema “O Mundo é Grande”, relançado em livro (capa dura) pela Editora Record, ilustrado pela artista argentina, Raquel Cané, cujos desenhos se  misturam com o amor e toda sua imensidão — um presente perfeito para pessoas apaixonadas e apaixonados por poesia. O livro está à venda em todas as livrarias do Brasil.

O Mundo é Grande”, Drummond escreveu na década de 1980 e foi publicado em 1989. “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar/O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar/O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar”.

Esta é a segunda vez que a ilustradora argentina Raquel Cané, trabalha com a obra de Drummond, a primeira aconteceu com o poema “O Elefante”. Dessa vez,  ela criou um movimento com a narrativa circular, no qual o início e o fim do poema vêm e vão como as ondas.  “O Mundo é Grande” transmite a vastidão da natureza e do amor em apenas seis versos.

As ilustrações de Raquel Cané, lembram as canções de Dorival Caymmi – nas cenas dos versos de Drummond – do pescador que entra no mar e sonha com a mulher amada; a avó que costura uma bolsa para presentear o neto; o menino que sai de casa para encontrar o pai na beira mar, que retorna do milagre dos peixes, uma a mulher que viu o homem partir e agora caminha para esperá-lo no mar ; e, por fim, o poeta, que encontra na areia uma concha caída do colar dos amantes e nela escuta toda a história desde o início. Isso é Drummond, isso é literatura e isso é Raquel Cané.

120 anos de Drummond – Em 2022, a Editora Record e José Olympio do mesmo Grupo, deram a largada nos relançamentos de novas edições de Carlos Drummond de Andrade, celebrando os 120 anos do poeta e os 80 da Editora. E vem mais novidades por aí, que serão lançadas até 2030, em homenagem ao poeta de Itabira.

Sobre Drummond

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902. Foi poeta, cronista e contista, firmando-se como um dos maiores nomes da literatura brasileira do século XX. É autor de clássicos como Alguma poesiaBrejo das almasSentimento do mundoClaro enigmaFazendeiro do ar e Fala, amendoeira. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1987, aos 84 anos.

Sobre a ilustradora

Raquel Cané nasceu em Santa Fé, Argentina, em 1974. Estudou Design Gráfico na Universidad Nacional del Litoral. Foi assistente de direção de arte na revista Rolling Stone e diretora na editora Ediciones B. É designer de capas de livros e autora de livros ilustrados como Sou eu e Nina, e de livros de poemas como Cartas a H e Piedra. Ilustrou livros de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Jane Austen e Jorge Luis Borges, entre outros.

Raquel Cané conversou com o MaisPB e contou como aconteceu a história desse livro, o universo do poeta mineiro e se estendeu a falar de seu trabalho, do seu contanto Pedro (Drummond, neto do poeta) e muito mais.

MaisPB – Como veio a ideia desse casamento da sua arte com o poema de Drummond?

Raquel Cané – Surgiu em um mês de outubro, durante uma visita de minha mãe. Ela é uma grande leitora, mais amante da narrativa e da história do que da poesia. Durante a visita, ela me disse: eu estava lendo Drummond, você tem livros dele para me emprestar? Então, enquanto eu estava separando livros da biblioteca, comecei a ler. A leitura em voz alta, seja para si mesmo ou para convidar à leitura, faz com que a palavra ganhe outra dimensão, expanda sua música. Mamãe voltou para casa e eu fiquei com o poema em loop, cada vez que sonhava aparecia outra imagem, como uma onda. Havia algo circular, algo de mamushka na repetição, amor como um eco, como uma expansão, um movimento sem fim. Então comecei a desenhar.

MaisPB –  – Você já conhecia a obra dele. Ilustrou “O Elefante”, do livro A Rosa do Povo (1945), publicado, em formato de livro, destinado ao público infantil, no ano de 1983. Podemos falar dessa experiência inaugural? 

Raquel Cané – Sim, eu conhecia a obra de Drummond, muito antes de ilustrá-la. Na verdade, o poema O elefante foi posterior. Terminada a ilustração de O mundo é grande, contatei o Pedro (Drummond, neto de Carlos Drummond de Andrade) que generosamente recebeu o projeto.

MaisPB – O livro é tão lindo e seus desenhos refazem o caminho amoroso do poeta. Estão lá: o pescador, que sonha com a mulher amada, a avó que costura uma bolsa para presentear o neto, o menino e o pai, tantas imagens juntas, tanto amor, não é?

Raquel Cané – A poesia é grande e convida tanto. Convida o amor. Gosto de pensar em mim primeiro como leitora e só depois como ilustradora, poeta ou designer. Este livro é minha humilde leitura sobre o poema. Assim, “nesta janela sobre o mar” se torna o olhar de cada personagem, “na cama e no colchão de amar” se torna arco, colo, areia, abraço, papel. E o amor, esse colar que une todos no mesmo movimento. O poema tem seis versos que, ao serem repetidos, contam a história de cinco personagens: pescador, avó, criança, mulher, Drummond. Gosto de pensar que a sexta repetição acontece nas mãos de quem está lendo o livro e vai contar outra história.

 MaisPB – Está lá a mulher que viu o homem entrar no mar  – vamos pensar “seu homem” e ela anda pela areia do mar a esperá-lo. Vamos falar dessa cena?

Raquel Cané – A mulher aparece duas vezes. A primeira vez que ela faz parte do mar, das estrelas, é o que o homem sonha. Ele a procura em seu descanso na proa. Na segunda vez ela vai ao encontro dele e quando eles se beijam, dois mundos se tocam.

MaisPB – A sacada de colocar os óculos do poeta na capa com imagens do mar, navio, peixes e ondas, já dá uma visão de amplidão. Como ficou decidido que a capa seria assim, uma janela para o mundo?

Raquel Cané – A capa é o olhar de Drummond, sua “janela”, porque, em última instância, é o artista que guarda as histórias na memória do papel. Rodrigo (Lacerda), o editor, sugeriu com muita precisão que a capa não deveria ser branca. Assim o mar continua fora das lentes. Sem querer, com a intenção de evitar o branco, o editor me deu outra leitura, a de que ultrapassa o quadro do que podemos olhar. Por fim, o que resgata nossa leitura é um humilde recorte.

 MaisPB – Falando no poeta maior do Brasil, nas últimas páginas você desenhou Drummond num estilo moderno, da camisa dele surge uma estampa do mar. Quanta delicadeza, né?

Raquel Cané – Drummond é a paisagem e a paisagem é Drummond, ambos abertos a serem lidos.

MaisPB – Você já fez ilustrações diversas para obras mundiais. Poderia fazer resumo desse trabalho?

Raquel Cané – Sou muito grata às minhas profissões porque com cada uma delas aprendo, cresço, Eu questiono e questiono o mundo ao qual pertenço. Com o passar dos anos, tomei consciência desse privilégio. É um privilégio poder se expressar em qualquer meio, poder ser ouvida, e nem todo mundo tem essa chance, o mundo tem mais vozes silenciadas do que ouvidas, portanto, todo aquele que pode se expressar e ser ouvido, a meu ver, tem uma grande responsabilidade: o que dizer. Cada autor que ilustrei era um diálogo que me transformou como pessoa, como artista. É uma obra a duas vozes que enriquece a minha, uma entrega que resulta numa terceira pessoa, o livro. E como todas as relações e pessoas, cada uma tem sua singularidade, sua densidade, seu universo que ilumina algo meu, me surpreende. Criar é uma celebração. Criar com os outros é uma verdadeira festa.

 MaisPB – Outra experiência foi o trabalho como assistente de direção de arte da revista Rolling  Stone. Conte aí pra gente?

Raquel Cané – Nasci no interior da Argentina, litoral, rio, areia e longos horizontes, e decidi me mudar para Buenos Aires aos 21 anos. Não conhecia ninguém nesta cidade pela qual me apaixonei, tão parecida com um tango, caótica, apaixonante. Mas reconheço que esta voracidade citadina espelhava algo de mim. A Rolling Stone foi isso, uma corrida a toda velocidade, de intensidade sem precedentes, que fez essa jovem de 23 anos ser atravessada por fotógrafos, ilustradores, editores, designers e músicos. Aprendi muito, conheci artistas generosos e pacientes que me ensinaram.

 MaisPB – Vem sempre ao Brasil? Além da nossa literatura tem predileções outras,  conhece a arte do Caetano Veloso, por exemplo?

Raquel Cané – Tenho viajado muito e para lugares diferentes no Brasil. Tenho lido e lido e ouvido e dançado Brasil. Guimarães Rosa, Machado de Assis, Clarice (Lispector), Chico (Buarque), (Maria) Bethânia, Caetano (Veloso), Angélica Freitas, (Gilberto) Gil, a lista continua…Tenho profunda admiração por seus artistas. Tenho vergonha de não falar e escrever português com precisão, embora leia e entenda muito bem. Acho que tenho aquele pudor de estragar uma música que adoro com a minha pronúncia ou com a minha ignorância, algo como não querer cantar desafinado.

 MaisPB – Seu trabalho está na obra de Clarice Lispector. Poderíamos falar sobre isso?

Raquel Cané – Estou convencida de que os livros que chegam às nossas mãos têm finalidades que desconhecemos. Naquela época eu havia começado a ler (Clarice) Lispector por um conto, “Amor”, que outro escritor compartilhou comigo. Lembro-me do meu espanto com a leitura, aquela mistura de estranhamento e paralisia. O que essa mulher está escrevendo?! Eu não parei de lê-lo. No final daquele ano, uma editora que amo muito, e que desconhecia esse processo, me ligou e disse: você quer ilustrar três livros infantis de Lispector? Foi maravilhoso. Ainda há textos dela que gostaria de ilustrar, como Água viva. Como já rascunhei “Meu tio o iauaretê”, de Guimarães (Rosa).

MaisPB – Quem é a mãe de  Panchi e Serena? 

 Raquel Cané – É difícil virar objeto de leitura, a melhor resposta seria dada por minhas filhas. Se você me perguntasse aos 20 anos se eu queria ser mãe, eu assinaria uma carta com um grande NÃO. Foi uma decisão e tanto para mim, porque tem a ver com compromisso, e esse é um dos amores que não têm volta. Há um longo caminho a desconstruir, de formas de amar, nutrir, acompanhar. A maternidade não foge ao sistema capitalista, como nenhuma das formas de vínculo que exercemos diariamente. Desde criança eu gostava de procurar tangentes, virando-me de cabeça para baixo para ver como se descobre o mundo. Eu tento como pessoa não esquecer isso. Também tento na tarefa diária de maternar.

7243747 Carlos Drummond de Andrade (photo); Private Collection; (add.info.: Carlos Drummond de Andrade (1902-87): Brazilian poet and writer); © Estate of Eddy Novarro. All Rights Reserved 2023.
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