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Kubitschek Pinheiro
Crônicas. “Cidade Aberta/Cidade Fachada” esse é o título do novo livro do escritor Ricardo Ramos Filho, um livro urbano, com cenas banais, de uma São Paulo que imensa, parada, cidade que nunca dorme, aberta ou fechada. O selo á Editora Record. A capa de Leonardo Iaccarino (com imagens de Carlos Alkmin) traz as duas faces da metrópole: a multidão e o vazio.
Está tudo lá no livro de Ricardo Ramos – as reações humanas e desumanas, que nos guiam na maior cidade da América Latina – sempre viva, em seus movimentos cotidianos, palco de muita clausura, no tenebroso período da pandemia de Covid-19.
São dois livros num só – Cidade Aberta, Cidade
Ricardo Ramos Filho nos coloca nas cenas entre paulistanos, paulistas, nordestinos, ricos, pobres e granfinos; nas sacadas, nas janelas, no metrô, na feira, as ruas largas e estreitas, Vila Madalena, Dr. Arnaldo, Pinheiros, a Consolação, o ABC e Paulista que hoje está povoada por moradores de rua. Pessoas e os animais,
O narrador é um motorista, um sensível professor, tanto no universo que o rodeia quanto aos temas de política nacional. O autor mostra que São Paulo não é apenas cenário das crônicas, mas de movimentos e cenas que se desenrolam em muitas cidades grandes e provincianas.
Além de ser atual, o texto de Ricardo Ramos Filho foca na necessidade do signo atemporal, do desejar,
O escritor Antônio Torres, ocupante da cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, assina a orelha do livro e descreve:“Pronto, eis a maior de nossas metrópoles retratada com afeto e estranheza, leveza e inquietação por quem nela vive desde menino, e que hoje, entre memórias da infância e visões do presente e do futuro, se compraz com a gratuidade nos trens subterrâneos. […] Neste jogo de luzes e sombras, fala mais alto o prazer do texto de Ricardo Ramos Filho em seus passeios entre a crônica e o conto, com embocadura de romancista, salve ele!”
O escritor conversou com o MaisPB sobre o novo livro de crônicas da velha Sampa de Caetano Veloso e todos nós.
MaisPB – A primeira parte do livro, A Cidade Aberta, fala muito da gente, da vida da gente, dos prazeres, mesmo sendo ambientada em São Paulo, mas Caetano Veloso já disse que São Paulo é como o mundo todo?
Ricardo Ramos – Eu tenho uma relação carinhosa com São Paulo, a Sampa de Caetano. Embora carioca, vim para cá muito cedo, aos 3 anos de idade. Aqui cresci e tive todas as minhas experiências afetivas. É uma cidade grande como outra qualquer, um mundo, só que no caso é a minha cidade. Com defeitos enormes, espaço cruel e violento, raras belezas naturais, lugar muitas vezes em que o cinza prevalece. Mas olhando mais de perto, circulando por suas ruas, andando em seus bairros, ainda há verde e o colorido das árvores, sobrados, vilas, vias com paralelepípedos. Há maritacas, no caso uma paixão, e essa coisa muitas vezes provinciana de se conversar com as pessoas nos espaços públicos, mesmo sem conhecê-las. São Paulo basicamente tem diversos contrastes. Aprendi desde muito cedo que a literatura se faz na contradição. Talvez esteja aí meu fascínio pela cidade.
MaisPB – Outra coisa, o livro não precisa dar nomes aos personagens, já que o narrador é um uma espécie de vouyeur, que certamente tem milhões em São Paulo, mas na Cidade Aberta você se apossa das cenas e passa pra gente. Estou certo?
Ricardo Ramos – É isso. Não dou nomes, mas caracterizo os viventes da cidade. Me aproximo deles, observo, sinto a proximidade, valorizo os encontros mesmo que à distância, circulo entre os meus. Mostro com carinho e amor minha gente.
MaisPB – É linda a cena das duas meninas se beijando, uma coisa que excita qualquer leitor, homem ou mulher, que você descreve bem, mas embora do lado de fora do livro, isso ainda é uma cena ignorada, massacrada pela Grande Família. Vamos falar sobre tudo isso?
Ricardo Ramos – A crônica traz muito isso. A necessidade de se falar a respeito do olhar preconceituoso. Ter claro que vivemos em um país em que quase metade da população escolheu um candidato homofóbico. Gente conservadora, com costumes religiosos retrógrados, muita dificuldade em entender que: “qualquer maneira de amor vale a pena”. Pessoas cruéis e com valores duvidosos. Eu quis mostrar no texto, talvez seja um dos que mais gosto no livro, que nosso olhar pode ser carinhoso, de aceitação e respeito pelo diverso. Particularmente minha observação está inteira ali. É assim que sinto, o amor sempre me comove. Tenha o formato que tiver.
MaisPB – Na verdade o livro mostra também que a fantasia não sai do enredo, não tem como, né?
Ricardo Ramos – Não. Até porque a gente escreve ficção. Por mais próxima da realidade que seja a crônica, a gente não está fotografando o cotidiano. Estamos interpretando o que vemos, sentindo e trabalhando com as palavras. Particularmente é um gênero que me permite bastante exposição. Nas crônicas eu mergulho em um estado de percepção particular. Meu olhar é curioso e apaixonado. Pela cidade, pessoas, o tempo das coisas. Escrevo com prazer.
MaisPB – As personagens que estão no trem, certamente, por não aceitarem o diverso, são meros personagens…
Ricardo Ramos – Sim. Vilões por sinal. Quem não aceita o diverso é para mim sempre o vilão da história. É contra eles que precisamos lutar sempre. Sem trégua. Porque a vitória deles estragaria o trem, a cidade, o país.
MaisPB – No capítulo “O Tempo dos Quintais” o narrador aparece às claras, e assume o barco e traz revelações incríveis. Vamos falar do poeta Drummond na vida, na sua arte, na gente?
Ricardo Ramos – Quem escreve traz sempre o eco de suas referências. Drummond é figura presente em meu texto. A poesia dele pode surgir eventualmente em alguma construção. E vai ser, certamente, sem que eu perceba. Porque aquela poética está introjetada de maneira tal que, junto com todos os outros escritores que li e me formaram, construirá o que sou como escritor. Todo autor traz em seu texto a soma de tudo que já leu, toda emoção encontrada em cada página lida. Por isso não acredito em escrita sem leitura. Antes de qualquer coisa sou um leitor apaixonado e obsessivo.
MaisPB – Você escreve bem, independente de ser neto do escritor Graciliano Ramos? Fala dele pra gente?
Ricardo Ramos Não tenho como mensurar pois não convivi com ele, nasci após a sua morte. Mas os ensinamentos que passou para o meu pai, também escritor, chegaram até o meu texto de alguma forma. Eu li muito Graciliano. Fiz mestrado e doutorado na USP sobre sua obra. Então acho que ele está presente sim. Divide espaço com muitos outros escritores lidos: Machado, Clarice, Rachel, Rosa, Zé Lins, Lima Barreto, Jorge Amado, Marques Rebelo, o Drummond, já citado, junto com: Bandeira, João Cabral, Jorge de Lima e Cecília Meireles, só para citar autores brasileiros. Se eu escrevo bem não foi só por Graciliano. Tudo o que li fez diferença.
MaisPB – Você diz que algumas palavras parecem ter gatilhos, parecem não, elas têm e terminam fazendo uma confusão mental. Às vezes trocamos tiros ou atiramos para todos os lados, né?
Ricardo Ramos – Sim. Até por não escrevermos assim tão conscientes do que estamos fazendo. Muitas vezes as palavras nos levam para onde desejam e nós apenas vamos com elas. Escrever é também submeter-se ao que o texto deseja. E ele tem vontade própria.
MaisPB – A parte da pandemia traz de volta da sensação de horror que vivemos, mas você não carrega os cadáveres. O contexto é outro, até porque é impossível imaginar uma São Paulo parada?
Ricardo Ramos – Sim. Mas houve um genocídio, e isso fica muito claro. São Paulo, como tantas metrópoles, diminuiu o ritmo, mas não parou. E dentro dessa morosidade imprevista o horror se instalou. Enquanto o governo federal se divertia, imitando gente sufocando, e não providenciando vacinas com a urgência necessária, pessoas morriam. Perdi muita gente querida e não perdoo os responsáveis. A gente já perdoou uma vez, com a Lei da Anistia, assassinos. Não podemos repetir o erro. A minha expectativa é de que os responsáveis sejam punidos e presos.
MaisPB – Será que estaremos no mundo, amanhã de manhã?
Ricardo Ramos – Particularmente acho que caminhamos para um final triste. O aquecimento global é irreversível. Em trinta anos viveremos em abrigos subterrâneos para fugir do calor. Os desertos terão crescido, fauna e flora diminuirão de espécies, o mundo estará bem menos feliz. Podemos até estar presentes amanhã de manhã, mas será um tempo mais feio.
MaisPB- Fecha o livro com os olhares da paciência, do que gosta, do esperar, das lágrimas, feridas e até fugir para bem distante, nunca uma ilha deserta, que não existe, apesar de Saramago ter descoberto uma ilha cheia de lições. Foi muito bom ter feito um livro pequeno, que na verdade é imenso, né?
Ricardo Ramos – Foi bom ter feito o livro. Com disse gosto de escrever crônicas. A esperança, e ela sempre segue as obras que publicamos, é de que faça pelo leitor o mesmo que os bons livros sempre fizeram por mim. A leitura nos torna pessoas melhores.
Quem é Ricardo, o neto de Graciliano Ramos
O neto de Graciliano Ramos é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior, em Portugal e nos Estados Unidos. É professor de Literatura tem doutorando e mestre em Letras no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, realizados na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisa na área de literatura infantil e juvenil, onde vem trabalhando academicamente Graciliano Ramos, privilegiando o olhar sobre seus textos escritos para crianças e jovens.
Ministra cursos e oficinas literárias: como aprimorar o texto, literatura infantil, roteiro de cinema, poesia, conto, crônica, romance. É roteirista de cinema com roteiros premiados. É orientador literário e analista de originais, colaborando com escritores na elaboração de seus livros. É cronista do Escritablog, publicando no espaço Palavra de Cronista, e do InComunidade, revista de literatura do Porto, Portugal.
É jurado de concursos literários: Proac, Portugal Telecom, Prêmio São Paulo de Literatura. É presidente da União Brasileira dos Brasileiros (UBE), São Paulo. Como sócio-proprietário da Ricardo Ramos Filho Eventos Literários cria e produz eventos culturais. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).
OPINIÃO - 22/11/2024