João Pessoa, 06 de março de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Alberto Manguel cita Balzac, logo na introdução ao livro Encaixotando minha biblioteca: “Uma obsessão é um prazer que atingiu a condição de ideia”. E, mais adiante, já na “Primeira digressão”, passa a palavra a Petrarca, que assim se expressa: “Sou perseguido por uma paixão inesgotável que até o momento não consegui ou não quis saciar. Sinto que nunca tenho o número suficiente de livros”.
Isto foi escrito para mim. Tenho esta mesma paixão indomável pelos livros. Sou obsessivo na minha cerrada e contínua relação com eles e os muitos derivados de seus formatos, valores, autores, temas e assuntos. Portanto, tenho uma ideia. Aqui, quantidade e qualidade não se excluem. Ao contrário, convergem no sentido de atender aos apelos secretos da intensa volúpia de ter, ler e reler todos os livros possíveis.
Sempre que penso nisto, lembro de Charles Nodier, bibliófilo francês que possuía mais de seiscentos mil livros e que costumava dizer: “[…] depois do prazer de possuir livros, não há outro mais grato que o de falar deles”.
Perfeito!
Neste setor, sou mallarmaico até a medula. Acho que tudo deve se transformar em livro. Sou borgeano até o caroço. Acho que o universo nada mais é que uma estupenda biblioteca. Estamos sempre lendo e sendo lidos, pois somos habitantes dessa biblioteca, seres feitos de carne e osso, mas também de palavras, verbos, substantivos, locuções, adjetivos, advérbios, a compor uma frase tentacular que nunca se completa.
Se aprecio uma paisagem solta na cambraia da natureza, me vem logo à mente certa imagem ou certa descrição que colhi num determinado livro; se me é dado conhecer uma nova pessoa, penso logo nesse ou naquele personagem, quer de Flaubert, quer de Dostoiévski, quer de Cortázar, não importa. Há sempre personagens que me ensinam a lidar melhor com as criaturas humanas, conhecidas e desconhecidas.
Se curto uma daquelas dores da existência ou uma daquelas grandes alegrias da existência, pois a existência é assim, feita de altos e baixos na verdade de seu lugar comum, evoco, de logo, situações semelhantes que experimentei, não na vida real, que a vida real é também tão imaginária, mas naquele romance de Nabokov, de Philip Roth, de John Fante ou de Henry Miller, só para referir autores de língua inglesa que não desgrudam de meu criado mudo.
Certos sons e certas melodias, tecidos ao acaso das manhãs, só valem para mim quando os deparo, agora arrumados no retângulo dos vocábulos, como instrumentos de ouro da música mais rara e dos poemas mais perfeitos. Poemas que residem na clareira iluminada dos livros de Pessoa, de Cecília, de Augusto, de Camões, de T. S. Eliot e de outros magos que fazem do verso uma insólita eucaristia de espantos.
Os livros são o meu único patrimônio. Neles encontro a beleza, a verdade, a justiça, o amor, o sonho, a terra, o mar, o céu, os deuses e a galeria imensa de seus elementos que me transmitem o aroma do infinito. Sim, porque os livros são coisas sagradas ao mesmo tempo em que são a certidão de batismo da vida, a mais refinada fotografia das sociedades.
Como Montaigne, não viajo sem eles nem na paz nem na guerra. Eles estão sempre comigo, mesmo quando estou fora da biblioteca. Tenho livros no quarto, no corredor, na sala de tv, na sala de visitas, na cozinha e no bar. Meu terraço em L está cheio de livros, minha casa é minha biblioteca, minha biblioteca é minha casa. Insisto: sou feito de palavras!
Não, não tenho muitos livros. Tenho muito poucos. Apenas, agora, pois mais tarde, devem chegar mais alguns, 20.289 volumes (títulos são mais, sem contar os jornais e as revistas). Meu desejo é ultrapassar a quantidade de Charles Nodier, se vida e pecúnia estiverem na graça de Deus. O resto é aproveitar a vida que me resta e ler, ler e tocar, colecionar e reler, reler e comprar, comprar sempre mais, e nunca emprestar…
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(Em tempo: a coluna de hoje é para Lúcia Maia, Francisco Gil Messias e Adhailton Lacet, que também amam os livros)
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OPINIÃO - 22/11/2024