João Pessoa, 20 de março de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Desço pela rua principal de Serraria procurando, nas paredes das casas e nos rostos das pessoas, os resquícios de minha infância. Nos olhares, redescubro detalhes antigos, sempre revelados a cada retorno.
Durante os anos de ausência da minha cidade, desde janeiro de 1970, consola-me a saudade de mim mesmo, do tempo de menino que continuou agarrado às pequenas coisas, como a água escorrendo pelas folhas da bananeira, a vaca no pasto, os burros conduzindo cana nos cambitos para a moenda do engenho. O movimento na bodega, com papai no balcão. Tudo guardado e revisto agora. No naufrágio das ilusões, recordo a mensagem de São Paulo, apóstolo, na Epistola aos Hebreus: “Lembrai-vos dos dias passados, aproximadamente vividos e sofridos – vencidos.”
Isaías, profeta, séculos antes de Paulo, dizia: “Lembrai-vos das coisas passadas.”
Boas ou angustiantes, às coisas passadas dou graças. Porque já se foram. Ao poeta Jorge de Lima recorro, lembrando de Invenção de Orfeu, como consolo: “Ó passadas vivências, dai-vos graças”.
Em tudo mora a eternidade. Basta ir ao encontro. Encontrar é o mistério. Em Deus tudo se cria. Quando destruído, se recria e floresce por intermédio da natureza. Tantas vezes, caímos e, ao sopro do vento abrasador que desce da Cruz, e diante do sangue e da água ao aspergir nosso corpo, nos levantamos.
Quando percorro as ruas de Serraria, o seu passado me vem tão perto de mim. Muitos testemunharam as veredas abertas e sangrando, a cruz plantada como símbolo do perpétuo na família que passou a contemplar o mundo pelas janelas de outra casa.
O café, a cana e a agave dando condições para que os centros industrializados pudessem conhecer sua riqueza. Todos nós retirando disso o sustento. Amsterdã recebia o produto para suas cordas, mas não sabia de onde vinha a fibra em fardos.
As palavras do Profeta, do Apóstolo e do Poeta alimentam as imagens da gente que ajudou na construção da Serraria que temos hoje. Muitos deles, alguns meus ancestrais que desbravaram as matas, cultivaram o café e a cana, para edificar sonhos.
Enamorado das paisagens, alimentado pela suave brisa na proximidade do pôr do sol, tantas vezes observado por entre as serras ao alcance da vista, sempre voltei à Serraria alimentado pela poesia e pelos saberes cultivados por onde andei.
Quatro anos depois de partir, ajoelhado, pedi perdão porque me fiz ausente. Contrito, estendi as mãos para tocar na terra que se juntou ao resto do barro ainda colado à sola dos pés, desejoso de narrar, num cântico suplicante, sua beleza e suas potencialidades econômicas e culturais.
Por isso escrevi e publiquei minha primeira crônica em fevereiro de 1975. Centenas de outros textos foram produzidos, maiores ou menores, durante cinco décadas.
Setenta anos depois, continuou olhando Serraria pelas janelas dos livros e através da memória dos outros.
Minha diminuta presença percorre essa terra para recolher sua poesia, viver entre a solidão dos que cresceram com as heras, as madressilvas e as palmeiras. A paisagem humana misturada aos riachos e córregos, ao sopro do vento que percorre as enseadas, amparada na chuva que umedece a terra. Eu carrego essa terra no meu coração de poeta.
A intermitência dos sonhos ajudou a suportar a espera, e muitos se tornaram pó de cristal que recrio na memória, porque recolho a sobra da poeira na paisagem da minha infância.
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