João Pessoa, 20 de março de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Faz tempo, milito na crítica literária com artigos semanais publicados nos jornais da terra. A União, que ainda resiste no impresso, e O Norte, o Correio da Paraíba, O Momento, o Contraponto, já fora de circulação, tragados pela era digital, sempre me tiveram em suas páginas, a dialogar com autores e obras daqui e de todas as regiões do país.
Este ofício, sim, porque a crítica literária nada mais é que um ofício, cujo objetivo central é explicar, esclarecer, interpretar e julgar o valor estético das obras literárias, levando-se em conta a sensibilidade, a inteligência e os princípios armazenados na formação teórica do crítico.
Questões abstratas à parte, ou seja, discussões cognitivas acerca do alcance e da eficácia de métodos ou de conceitos, este ofício sempre me deu certo prazer, principalmente se me atenho a algumas particularidades da vida literária. Por exemplo: o fato de que, periodicamente, chega, às minhas mãos de leitor, livros de escritores, ensaístas e poetas de todo o país, o que, não somente me alegra pela simples razão de que o meu acervo bibliográfico se enriquece, eu que gosto tanto de livros, como pela delicada relação de amizade literária que se instaura espontaneamente.
Posso dizer, portanto, e sem qualquer pabulagem, que tenho amigos literários disseminados pelos rincões dessa imensa geografia cultural que é o Brasil. Amigos que não conheço pessoalmente, mas com os quais convivo na intimidade das letras e das palavras, a selar o conforto moral e psicológico que deve imperar no ambiente mágico das “amizades literárias”, como diria Raísssa Maritain, ou das “amizades bibliográficas”, na justa expressão de José Rafael de Menezes.
Farei um breve registro dos livros que recebi nestes últimos dias.
Com uns, faço a leitura de reconhecimento e, aqui e ali, emito meu parecer, consentâneo com os limites de minha capacidade de recepção estética. Outros, já leio com a sensação de que minha leitura vai passar as fronteiras exigidas pelo ofício da crítica, na medida em que já não é só o crítico que lê, o crítico que procura formular, a partir de sua ética, uma resposta pontual a esta ou àquela obra publicada. Na verdade, é o leitor, leitor de todas as horas, a fazer da leitura, não o veículo institucional que orienta publicamente outros leitores, mas uma experiência existencial que alarga sua percepção de mundo e o introduz, desarmado, nos enigmas do ser e da vida.
Isto, porém, convoca o espaço para outras reflexões teóricas. Voltemos aos livros e vamos destacar apenas dois poetas.
Nos óbices do óbito (São Luís, Teresina: Halley S∕A, Gráfica e Editora, 2022), de Nauro Machado, livro enviado por sua mulher, Arlete Nogueira da Cruz, também poeta e escritora. Quadragésimo sétimo volume de uma obra poética extensa e intensa, dotada de uma unidade formal e temática sem par na literatura brasileira.
Quer na forma fixa, sobretudo, na prática do soneto, onde se revela exímio cultor, quer na forma livre, de verso alongado ou de recorte minimalista, Nauro Machado é um poeta visceral, que traz, sempre, para a esfera compósita do poema, os temas permanentes (o tempo, a morte, a vida, a solidão, o desamparo, a angústia), atrelados, no entanto, ao movimento concreto e carnal da matéria factível e biológica. Nesta “opulência bibliográfica”, para me valer das palavras de Ivan Junqueira, não há descompasso estético. O conteúdo se adensa cada vez mais e a forma se apura na materialidade de um grande poema que se escreveu a vida inteira.
Entre cascavéis e beija-flores: uma antologia mínima (Teresina: Fundapi, 2021), de Salgado Maranhão, também do estado de Gonçalves Dias. Poeta e letrista, autor de obra já com muitos títulos, entre os quais destaco: Mural de ventos, Sol sanguíneo, O beijo da fera e O mapa da tribo.
Em Salgado Maranhão, a palavra passa por um tratamento especial, consideradas as três instâncias sêmicas que as sustentam na lógica do poema: a sonora, a ideativa e a imagética. Ferreira Gullar fala em “sinergia”, para definir sua atitude perante a construção poética. Uma sinergia, diria, que entrelaça leveza e precisão, fazendo emergir, dos jogos vocabulares, elementos inusitados do real. Veja-se, por exemplo, o poema “Cantante” (P. 51), dedicado a Luiz Augusto Cassas, outro poeta maranhense de fôlego: “Estou bêbado de canções ∕ e azul. ∕∕ Estou cantante para nada, ∕ para ninar a madrugada. ∕∕ (O cantar de um galo em férias.) ∕∕ Canto até para o vento ∕ que não tem começo nem fim; ∕∕ canto até para as pedras ∕ que silenciam para aplaudir”.
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TURISMO - 19/12/2024