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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Não há salvação!

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publicado em 29/05/2024 às 07h00
atualizado em 28/05/2024 às 14h16

 

Somos animais sem salvação. A não ser que se imagine uma salvação a conta gotas, experimentada, gratuita e espontaneamente, como pequeninas fatias vindas do paraíso e que nos são dadas viver em circunstâncias muito especiais, fermentadas no ordinário da rotina cotidiana.

Sim, podem existir resquícios de milagre na pele cinzenta do dia a dia. Coisas e fenômenos que nos acenam com a magia da felicidade e, portanto, com os cuidados delicados de uma possível e efêmera salvação.

Não esqueço, porém, a verdade destes versos que fiz, como um refrão, para um poema a que intitulei de “Cemitério vivo”. “Sei também que saber não salva. ∕ Sei também que saber não salva”.

Coisas?

Algumas parecem resumir os elementos do repouso, do bem-estar, da satisfação que pinga, aqui e ali, quando menos esperamos. Por exemplo, nada me acalma mais que o balanço de uma rede, a sesta numa espreguiçadeira, ou, em outra clave, a sombra de um juazeiro, um oratório, um São Francisco, uma coruja, um búzio, um aquário, um aviário, um livro de poemas.

A natureza, na sua energia nutriente e na sua exuberância pacificadora, é pródiga nas ofertas alimentares da salvação. Quem sabe, não seja a salvação a própria natureza.

O campo, o mar, as árvores, o sol, o céu, a lua, os rochedos, as montanhas, as planícies, os rios e os riachos, as cordilheiras e a neblina, as estrelas, os asteroides, os ciclos do zodíaco, os enigmas da eternidade, tudo, enfim, o visível e o invisível, o sagrado e o profano, o real e o mitográfico, se organiza numa sintaxe extremamente confortável para os reclamos do corpo e para os pedidos da alma.

Certas coisas materiais e certas coisas naturais podem pavimentar as estradas surpreendentes da salvação. Diria que nelas existem uma ecologia do encanto, uma pedagogia do prazer, uma teologia da carne e do espírito disseminadas pelas vértebras do tempo e pelas cartilagens intangíveis dos espaços.

Fenômenos?

São tantos e tão díspares, porém, irmanados nas preces e súplicas por um ínfimo toque de salvação. Todavia, “Sei também que saber não salva. ∕ Sei também que saber não salva”.

Primeiro, a chuva, com o ouro de suas águas, acariciando os músculos da terra, fertilizando a argila dos desertos, iluminando o coração das paisagens e lavando os escuros escondidos no pensamento das criaturas humanas.

A chuva sempre me pareceu uma alegre elegia, uma orgástica oferenda dos deuses que dançam, um estranho souvenir enviado do éden, para nos salvar enquanto seus líquidos cristais deslizam eroticamente sobre as omoplatas do mundo.

Depois vem o vento, com seus uivos alucinados, dilacerando o solo de todas as geografias. O vento, vergastando varandas e varais, vales e várzeas, vasos, veias, vulvas.

O vento faz bem aos cinco sentidos e possui a rara didática da música e da velocidade. Não importa se do Norte, do Sul, do Leste ou Oeste, o vento é o mesmo artefato inefável e cortante, o verso veraz da poesia que passa e que fica, como um instantâneo, nos órgãos do vazio e da beleza.

Há, assim, uma memória do vento. Uma história que carrega muitos sinais de salvação. E isto me soa bom e quase perfeito. Contudo, “Sei também que saber não salva. ∕ Sei também que saber não salva”.

Sinto que não há salvação.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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