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Em Nome do Desejo (1983) estabelece e permite uma escamas entre a vida de Trevisan e sua produção literária, por lidar com um cenário que permeou sua infância, isto é, a história se passando em um Seminário de Padres, onde o autor, não apenas conviveu ao longo de sua infância/adolescência, mas passou a desenvolver suas atividades políticas.
Forte, intenso e impactante, mas sem perder a sensibilidade e a delicadeza. Em Nome do Desejo é um clássico. Lançado originalmente em 1983 e há muito esgotado, o romance retorna em nova edição, com design assinado pelo premiado artista gráfico Gustavo Piqueira.
O objetivo da obra é entender como a sexualidade entre garotos é trazida ao discurso, visando sublinhar a centralidade de alguns mecanismos sociais na maneira como operacionaliza-se o binário hetero/homossexual na vida social contemporânea que nos leva a entender como a sexualidade está inserida no mundo, de regulação social, marcada como um dispositivo histórico de poder. Alguma dúvida?
Quem é Trevisan
João Silvério Trevisan nasceu no dia 23 de junho de 1944, em Ribeirão Bonito, interior de São Paulo. No início da década de 1970, abandonou o Seminário após dez anos de prática religiosa, assumiu sua homossexualidade e iniciou sua carreira profissional como cineasta e dramaturgo. Após o decreto do Ato Institucional n. 5 (AI-5), teve censurada sua primeira obra de ficção: Orgia ou o homem que deu cria (longa-metragem, 1971). Devida a repressão instaurada pela ditadura civil-militar, João partiu para o México e um ano depois, seguiu para Berkeley, na Califórnia, onde viveu por dois anos e se assumiu politicamente como anarquista. Retornou ao Brasil em 1974 e, alimentado por novas formas de luta e convivência, engajou-se como ativista homossexual. Em 1978, participou da fundação do jornal Lampião da Esquina – primeiro jornal gay do país.
Em entrevista ao MaisPB, Trevisan conta mais, muito mais, mata a cobra e mostra o pau.
MaisPB – 41 anos depois o romance Em Nome do Desejo volta mais atual do que nunca, como se fosse pela primeira vez. Vamos começar por aqui?
JSTrevisan – Por se tratar de uma narrativa sobre descoberta do amor, acho que Em Nome do Desejo tem vocação atemporal e universal. Ler Romeu e Julieta de Shakespeare navega nesse mesmo viés, sem nunca deixar de perder sua beleza, seu encantamento. Mas pense, por exemplo, num Romeu e Romeu, personagens igualmente adolescentes. Acrescente novo ingrediente de interdição: num contexto que prega o amor ao próximo, proíbe-se o amor entre iguais. Quer dizer, o amor entre “próximos demais” é proibido por pecaminoso, nas chamadas “amizades particulares”. Aí está disposta a trama que emblematiza o impasse de uma cultura inteira, em que a doutrina cristã, altamente avessa ao gozo carnal, bate de frente com a descoberta da paixão adolescente, num momento em que os hormônios entram em tal nível de ebulição que são levados à rebelião. Ainda que em contexto bem diverso, o psicanalista Igor Caruso abordou esse drama num livro perturbador: A separação dos amantes.
MaisPB – Nessa 4ª edição, os desenhos amorosos, o design assinado pelo artista gráfico Gustavo Piqueira, deixou a edição da Record mais cobiçada, não é?
JSTrevisan – Não sei se foi apenas deixou a obra mais cobiçada, afinal qualquer obra que pretende instigar não precisa da manipulação. Uma bela edição propõe, antes de tudo, respeito a quem vai ler. Nossa intenção editorial foi acrescentar um visual mais contemporâneo para apresentá-la às novas gerações, após o livro ter ficado 20 anos fora de catálogo. Foram essenciais tanto o trabalho de organização geral do Gustavo Piqueira quanto as ilustrações do artista plástico Francisco Hurtz, que veste a nudez masculina com inocência e libido, através de uma admirável pureza de linhas. Seus nus explícitos enfatizaram esse olhar contemporâneo.
MaisPB – Vamos chamar seu livro uma história de amor sem fim, pulsante, o encontro do desencontro, o Ticão, o Tiquinho, o Abel Rebebel, cenas urbanas ou isoladas, bem mais bonita, apesar da dor do fim e tudo tem fim, né Trevisan?
JSTrevisan – Basicamente eu quis verter no romance a experiência de alumbramento ao me descobrir apaixonado por meus colegas de seminário. Esses amores de revelação tornam-se inesquecíveis, e seu impacto é universal. Especialmente quando se trata de amores na contracorrente, como no caso homoerótico – mas não só, podem ser também entre diferentes classes e nas trocas inter-raciais ou entre etnias. Toda interdição só faz acrescentar elementos que instigam e tornam o mistério ainda mais fascinante. Os místicos vivenciaram essa experiência de forma magnificada, ao revelarem os embates entre carne e espírito, como se vê no romance através da onipresença de Santa Teresa D´Ávila e São João da Cruz.
MaisPB – Em dado momento, Em Nome do Desejo, achei que estava no filme De Olhos Bem Abertos de Kubrick, aquela sensação de amor e morte, mas sempre de amabilidade e delicadeza. Seu livro é mesmo cinematográfico, concorda?
JSTrevisan – Acho que sim. De certo modo, a estrutura em perguntas e respostas, que mimetiza o catecismo católico, aponta para a estrutura de um roteiro. Vai revelando, com muita flexibilidade narrativa, climas extremados e emoções opostas, dividindo-se entre o olhar múltiplo de uma câmera e os cortes da edição fílmica. Por seu caráter indeterminado, o narrador oscila entre o distanciamento e a interferência, adicionando uma agilidade que permite narrar e ao mesmo tempo discutir, e esse movimento, digamos, panorâmico sugere a natureza múltipla da imagem cinematográfica.
MaisPB – Há quem diga que esse homem que volta ao seminário é o Trevisan, mas somos todos nós sempre estamos voltando ao lugar inicial, ao prolongamento do prazer, né?
JSTrevisan –Talvez tenha sido sim uma volta metafórica aos meus tempos do seminário. Escrevi o romance perto dos 40 anos, em meio a uma ruptura amorosa dilacerante. Resgatei os amores da adolescência para entender a violência do que estava acontecendo comigo na experiência adulta. Mas não se trata absolutamente de obra autobiográfica, como algumas resenhas acharam. Misturei emoções minhas às experiências de outros homens que viveram em seminário, um microcosmos explosivo em que o apelo da paixão carnal se chocava com as interdições da doutrina cristã. Aquele espaço me pareceu a arena perfeita para encenar os caminhos e descaminhos do desejo dissidente, quando garotos descobrem que vivem num mundo estranho. Eu sei como é assustadora essa sensação de viver no exílio em seu próprio país.
MaisPB – Em Nome do Desejo já foi aos palcos carne/espírito, um espetáculo poético pungente com uma sensualidade mundial, tendo sido a segunda montagem da Companhia Teatro de Seraphim, do Recife, dirigida por Antonio Cadengue, na primeira metade dos anos 90. Vc viu o espetáculo?
JSTrevisan – Claro que vi, tanto no Recife quanto na curta temporada entre Rio de Janeiro e São Paulo. Além de ter escrito a versão final a partir da primeira versão de Antônio Cadengue para a peça, precisei substituí-lo nos ensaios antes da estreia paulistana, após seu adoecimento repentino. Além do mais, vi praticamente todas as 40 apresentações no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Eu amava de paixão o espetáculo. Ainda sinto orgulho de ter trabalhado com Antônio na adaptação teatral do meu romance.
MaisPB – Vamos lembrar do calvário, das lambadas, do garrafão, do jogo da vida que está presente em todo livro?
JSTrevisan – Eu teria que dar spoilers demais. Só mesmo lendo o romance.
MaisPB – Pra você quem é a personagem mais fascinante, Abel ou Tiquinho, ou não daremos spoiler?
JSTrevisan – Não se trata apenas de spoiler. Abel e Tiquinho são ambos fascinantes porque viveram na pele o fascínio exercido pelo amor, até o ponto de buscarem ser um só sendo dois. Essa é a grande utopia amorosa.
MaisPB – Me diz uma coisa, quando o livro foi lançado você foi perseguido e exilado, mas até hoje seu livro deve incomodar os caretas, as famílias religiosas, né?
JSTrevisan – Na verdade, nessa época eu já tinha voltado do exílio real. Mas, além de continuar vivendo sob a ditadura militar, havia ainda meu exílio interior enquanto homossexual. O que posso sugerir é que os caretas de todos os matizes leiam o livro. Talvez entendam melhor por que são caretas.
MaisPB – Já esteve entre nós, aqui na Paraíba?
JSTrevisan – Claro que sim, mais de uma vez. Aliás, terminei de escrever Em nome do desejo em João Pessoas, hospedado na casa de um professor francês amigo meu. Se você procurar a “Advertência”, no final do romance, estão apontados os locais onde o escrevi: Pauliceia, Maurícia, Filipeia. São três nomeações toponímicas: a primeira para São Paulo, a segunda para o Recife e a terceira justamente para João Pessoa.
MaisPB
OPINIÃO - 22/11/2024