João Pessoa, 25 de setembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Talvez o poema não possua uma música própria dentro do arranjo das palavras e da norma dos versos. Uma música que se instale, paradoxalmente, na clareira acústica do silêncio, como se fora uma das propriedades essenciais de sua estrutura. Uma música, portanto, quase impossível de se apreender na sua imutabilidade ríítmica, uma vez que, só no poema ela se manifesta e se cristaliza.
Eis algo a se meditar.
Se não há música propriamente dita, diria, apoiado em Manuel Bandeira, num dos deliciosos capítulos de Itinerário de Pasárgada, que existe, no poema, “uma musicalidade subtendida, por vezes inexpressa, ou simplesmente indicada, da poesia”. Dito de outra forma, se não existe música, há, no entanto, uma possibilidade musical, na medida em que se pode rastrear as múltiplas melodias que um texto poético pode sugerir.
Claro, tudo vai depender do gosto, do interesse, da sensibilidade, ou da inclinação daquele compositor que almeja musicar esse ou aquele poema. Bandeira, por exemplo, se diz satisfeito com a melodia que certos músicos puseram nos seus, tais como Villa-Lobos, Mignone, Camargo Guarniére, Lorenzo Fernandes, Jaime Ovalle e Radamés Gnatalli, entre outros.
A melodia, que vem de fora, embora sugerida pelos apelos musicais do poema, é como uma leitura, uma interpretação, uma tradução ou mesmo um diálogo. Tanto é que um poema pode conter diversas e diferentes melodias, criadas, sobretudo, a partir da intimidade que o leitor, no caso, o musico, mantém com o universo formal e temático do poema.
Já tenho alguma experiência nesse delicado campo das coisas estéticas. Tenho alguns parceiros que se aventuraram na tarefa de pôr melodia em meus poemas. À semelhança do autor de Estrela da vida inteira, também me aprazem certas leituras que fizeram, pondo melodia no artefato verbal e silencioso dos textos.
Tom K, maestro e professor da UFPB, musicou alguns trechos do poema “Oratório do rio”, do livro Ofertório dos bens naturais, inclusive, chegou a publicar, pela referida instituição de ensino, um opúsculo com a letra e a partitura, abrindo, assim, caminho para outras interpretações. O Coral Universitário, sob a regência de Eduardo Nóbrega, e cenografia de Eleonora Montenegro, transformou o poema musicado em espetáculo, apresentando-se, aqui, e em várias regiões do país.
Quando ouvi e vi pela primeira vez o composto auditivo e visual, senti que o meu poema crescia, na sua energia semântica, a cada andamento musical e a cada passo da cenografia. Percebi que a interpretação dos atores, associada à sensibilidade do compositor, tornavam, decerto, bem melhor o meu poema, na medida em que a leitura respondia a seus apelos secretos.
“Seixos do sonho”, também poema de Ofertório dos bens naturais, foi motivo de júbilo. O maestro Luís Carlos Otávio, na regência do Coral Voz Ativa, colheu um primeiro lugar num festival de música, em Campina Grande. A “música subtendida” e preservada no corpo do poema, no seu silêncio vivo, possibilitou uma melodia perfeitamente adequada às suas sugestões, exatamente porque, penso eu, o maestro soube ler seus compassos e arranjos intrínsecos com a sabedoria de sua sensibilidade estética.
Artur Silva aproveitou a sugestão dos blues que constam de São teus estes boleros, para fazer de um deles uma composição inteiramente comprometida com a tradição da música negra americana. O tom lento, denso, compassado, quase dramático, foi motivo de uma das interpretações mais refinadas da cantora Débora Vieira, com sua voz quente e rasgada. Meu texto ganhou vida!
Assim como ganhou vida um dos pequenos poemas, ainda de São teus estes boleros, na melodia de Salvador de Alcântara. Um frevo, a bem da verdade. Não consigo mais ler o poema sem ligá-lo ao ritmo e à cadência carnavalescos, a misturar alegria e tristeza, euforia e solidão que o compositor soube captar muito bem.
Xisto Medeiros botou música em “Pessoana”, poema de Todos os lugares, e em trechos de A comarca das pedras. Trabalhos bem elaborados que atingem, na obliquidade de sua leitura musical e na sua originalidade interpretativa, aquele raro ponto de encontro entre palavra e melodia.
Por fim, muitos de meus poemas passaram pelo crivo musical do mano, Dudé das Aroeiras, poeta e cantador, boêmio e seresteiro. Destaco, entre outros, “O lunário das ervas”, “As baraúnas”, “Brinquedo”, “Umbuzeiro”, “Catavento”, a ostentarem a beleza dos arranjos musicais, a singularidade interpretativa, a voz grave e sisuda, encorpando a silente textura de cada verso.
Tudo isso me agrada muito. Sou dos que pensam que o poema deve, sim, ser lido e amado. Mas também pode e deve ser musicado, pintado, fotografado, dançado, esculpido, arquitetado, estando sempre aberto aos ricos vocativos de outras linguagens. Até porque, como nos ensina Charles Baudelaire, “as artes se correspondem”.
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OPINIÃO - 22/11/2024