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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Zé Américo, autorretrato

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publicado em 11/12/2024 ás 07h00
atualizado em 10/12/2024 ás 16h03

Consultando, lendo e anotando o livro Cartas que falam: ensaios sobre epistolografia (Belo Horizonte: Relicário, 2023), de Leandro Garcia Rodrigues, atenho-me ao capítulo, “José Américo de Almeida e seu tributo a Alceu”, e me deparo com material inédito e de indiscutível relevância, tanto para a valorização do gênero epistolar e sua teoria, como para o enriquecimento da vida e da história literárias.

A correspondência entre escritores constitui, sem dúvida, acervo substancial, documento vivo, valendo, assim,  como fonte indispensável  ao conhecimento dos autores, das obras e do seu contexto histórico. Vejamos um exemplo com as considerações que passo a fazer.

Em 11 de março de 1928, Alceu Amoroso Lima, o mais notável crítico literário de então, publicou, em O Jornal, o artigo “Uma revelação”, no qual discorre sobre A bagaceira, de José Américo de Almeida.

Mesmo ressaltando notas negativas, a exemplo de “certa parcialidade no realismo dos sentidos e a falta de impressão de tempo”, não nega o valor geral do romance, exaltado em muitos aspectos estruturais, temáticos e estilísticos. Alceu fazia uma abordagem crítica ao mesmo tempo estética e humanística.

A leitura revela entusiasmo e euforia na faixa específica da recepção crítica. Em certo sentido, a voz consagrada do ensaísta  respeitado abre caminho para a divulgação e a consolidação histórica e estética do romance de José Américo de Almeida.

Ao fato e à atitude do grande crítico, que projeta nacionalmente o romance do autor paraibano, definindo-lhe os contornos e o situando como obra singular e inovadora, José Américo de Almeida, decerto, não se mostrou indiferente.

Primeiro, em telegrama, agradece as palavras do mestre Alceu Amoroso Lima. Depois, em de 2 de abril de 1928, respondendo-lhe uma carta que recebera e iniciando, assim, uma correspondência das mais frutíferas para a história literária brasileira, o escritor paraibano toca em três pontos fundamentais, a saber.

O primeiro diz respeito às intenções que motivaram o romancista a escrever seu texto. Diz José Américo de Almeida que escreveu A bagaceira “do nordeste para o nordeste”. Fala, ainda, do seu “medo” da “incompreensão cultural” por parte da inteligência do sul e alimenta a convicção de que certamente sua “arte bárbara” seria recusada, uma vez que, segundo seu entendimento, “reage em fórmulas novas contra o academicismo pé de boi”.

Eis um assunto que pede meditação!

O segundo traz à tona  a admiração e o respeito que o escritor nutria pelo crítico. Na sua concepção, Alceu Amoroso Lima praticava uma  “crítica de adivinhão”, isto é, uma espécie de crítica dotada de “agudíssima penetração de quem sente toda a obra antes de compreendê-la”. Portanto, com o aval do mestre do rodapé, na década de 20 do século passado, basta-lhe, a ele,  José Américo de Almeida “ter sido revelado pelo mais prestigioso dos paraninfos”. Acrescenta, no mesmo diapasão o autor de A Paraíba e seus problemas: “É tamanha sua autoridade, que de toda parte me chegam pedidos do romance, de literatos, de pessoas desconhecidas e de livrarias”.

O terceiro ponto,  e, provavelmente, o mais curioso, sobretudo, se considerarmos a figura humana do homem e do escritor, reside naquilo que ele mesmo denomina de “retrato do desconhecido”, ou seja, um tipo de autorretrato, diria idiossincrático e heterodoxo, que muito revela de sua personalidade singular.

Traços físicos, formação, temperamento, estilo, posturas etc., tudo aparece nas linhas e entrelinhas deste parágrafo americista.Vou transcrevê-lo, aqui, como arremate deste artigo, e para que  você, leitor ou leitora, possa tirar suas próprias conclusões. Ei-lo:

“41 anos com princípio de calvície correspondente aos cabelos que preferem cair a ficar brancos; 3 anos de seminário, a pulso, com sonhos frequentes de que volta a ser seminarista; 14 anos de recolhimento com a inteligência entupida da poeira dos clássicos; vida ao ar livre  nos últimos tempos, com um grande estrago de sensibilidade no fórum: bibliografia: uma conferência sobre poetas da abolição, uma caricatura de novela e um volume de 600 páginas sobre problemas econômicos e sociais, que não fugiram como obras do mesmo autor; péssimo conversador; língua solta nas indesejáveis emoções da oratória; ex especialista em polêmicas estéreis; um tanto ou quanto sorumbático; exageradamente míope; só sabe assinar o nome, sendo o mais feito à máquina de escrever e mais não

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