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Francisco Leite Duarte é advogado tributarista, auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, doutor em direitos humanos e desenvolvimento. Na Literatura, publicou os romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias (“Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas.

Os inocentes têm cada uma….

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publicado em 14/03/2025 ás 08h03

 

Aos meus 10 anos, papai completara 71. Meus olhos eram abismados e medrosos; os passos, peraltas e sonhadores. Os do meu pai, capiongos, porque embaçados. Não havia sonhos nem projetos, apenas marejavam a preocupação de quem estava em descompasso com o tempo.

Minha mãe perdera a vista e tateava sua revolta em lamentações. A resistência do viver em polvorosa, posto que ainda havia lições para ensinar.

No quarto, objetos enferrujados, tão resmungões quanto os olhos de minha mãe, dormiam em abandono. Nem os ciganos, outrora tão presentes, apareciam para o escambo com papai.

14 anos, o tempo da minha irmã;

O vento era cúmplice do medo. Quente e frio.

A outra, 12.

As nuvens eram tísicas.

À noite, a dor carcomia os olhos da minha mãe.

Glaucoma.

O tempo desfazia a luz.

Os dois moradores de papai fugiram.

O futuro deles era incerto, bem melhor do que a decadência do presente.

O Sol cuspia nossa sina, sem se preocupar com quem quer que fosse.

O silêncio zunia.

Eu tinha uma camisa de volta-ao-mundo e um calção rasgado na bunda.

O tempo enfeitiçou as suas próprias dobras.

Cof, cof, cof.

Papai tinha uma hérnia.

Duas.

E defluxo.

Diabetes.

Próstata corrompida.

As duas mãos para trás

Tudo estourado dentro dos meus olhos.

Eu tinha 10 anos.

As meninas catavam algodão.

Eu queria estudar, só isso.

Onde?

Minto.

Jogar bola ou estudar, em qualquer desordem.

Como?

Caristia

Os pavios de algodão fiados por minha mãe estavam caducos

Se na lamparina, querosene não havia.

Como os olhos de minha mãe

Sem lampião.

A zona rural, nossa morada.

Sítio Saco Sinhazinha, Senhorinha. O que?

Ainda assim, havia risos.

Como não?

O inverno, minguado, tossira.

Bum, bum, bum

Terra seca no cio

Trovões? Sim. Acanalhados.

Cheiro de chuva

Banho de goteira

Chá de flor de laranja

Tio Chico contava as histórias de Carlos Magno na sala de Dedé

Pão doce dentro da xícara de café

As novenas do mês de maio em Areias

Das tabocas de fogos

Eu corria atrás

O oratório azulzinho cheirava a flor seca de pereiro…

E se a dor dos olhos de minha mãe sumisse?

Papai amanhecesse melhor?

Por que não?

Quem sabe?

Os inocentes têm cada uma….

@professorchicoleite

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB