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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

Augusta e o poder da música

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publicado em 14/04/2025 ás 09h26
atualizado em 14/04/2025 ás 14h00

 

Ao receber o livro “A arte de ensinar e aprender – uma experiência com a música”, de autoria de Conceição de Maria Estevam, enviado pela querida prima Simone Hagge, logo chamou-me atenção, como professora de didática, o título da obra. Ensinar e aprender são fenômenos do mesmo momento. O professor que ensina é aquele que faz o aluno aprender. Não existe ensino se não houver aprendizagem. Isto é condição “sine qua non”.

O livro de Conceição, muito bem escrito e fundamentado teoricamente, tem por objetivo demonstrar o significativo papel da música no desenvolvimento humano. Constituído de cinco capítulos em que a autora alcança o ineditismo de relacionar os fundamentos epistemológicos de diversos teóricos como fulcro do embasamento defendido, em relacionar com os procedimentos didáticos e metodológicos do ensinar e aprender exercidos na prática docente da professora Augusta, e assim, analisar seu comportamento na construção do conhecimento musical objeto de seu ensino. Na elaboração do conteúdo substancial do compêndio a autora recorre a história oral, usando 41 depoimentos de vários sujeitos para ratificar os seus argumentos. Isto possibilitou conhecer mais profundamente a minha tia Augusta e as primas, uma vez que tive pouca convivência com elas devido a distância das nossas residências, pois nasci e sempre morei em João Pessoa e em Salvador só nos víamos nas férias de final do ano. Todavia, mesmo com pouca vivência que tivemos, quando acontecia a presença de tia Augusta, ela era bem marcante pela sua maneira doce e sorridente em contemporizar junto a minha avó Carmem, com bom humor, as travessuras que por acaso aconteciam, o que a fazia muito querida.

A família de meu pai era grande. Minha avó teve muitos filhos e conseguiu criar sete: Pilara, Serafim, Milito, Pacita, Pepe, Sinda e Augusta. Meus avôs, espanhóis, Carmem Martinez Fernandez, proveniente de Abelenda das Penas, município de Carballeda de Avia-Ourense e Gumercindo Rodriguez Fernandez, nascido em Avion, na Galícia, província de Ourense, migraram para o Brasil no período de pós-guerra, ascensão do Partido Nazista, na época de Franco, fixando-se em Salvador, sendo acolhidos pelos patrícios espanhóis aqui residentes. O Brasil vivia a era Vargas, logo após a Revolução de 1930. No meio desse contexto nascia, prematura de sete meses, em Salvador/BA, Augusta Socorro Rodriguez Martinez, no dia 29 de janeiro de 1933. Mereceu cuidados redobrados maternos e de todos que estavam em seu entorno. Imaginem cuidar de uma prematura nessa época com os parcos recursos existentes.

Augusta, a caçula da família, foi criada cercada de carinho de todos, teve sua formação escolar tradicional conforme o sistema de ensino vigente. O Curso Primário realizou no Colégio Antônio Calmon, o Ginasial no Colégio Estadual Carneiro Ribeiro. Foi nesse Colégio que ela conheceu Raynal Hagge, o seu grande amor que depois tornou-se seu esposo. Ele formou-se em Odontologia, tendo integrado a primeira turma da Universidade Federal da Paraíba. Também neste tempo, Augusta, que diferente de suas irmãs não tinha aptidões para prendas domésticas, iniciou seus estudos de piano com a professora Zulmira Silvany, mestra renomada e notabilizada no Estado da Bahia, que mantinha um curso particular de piano de elevado nível, fundado em 1930: oferecia ensino musical com instrução técnica-musical, de forma sistemática. Nessa época destacavam-se duas instituições: O Instituto de Música da Bahia e o Curso de Música Zulmira Silvany, que influenciaram e inseriam-se na prática e na cultura musical em Salvador, promovendo eventos musicais públicos memoráveis.

Vale ressaltar a atuação da personagem Zulmira Silvany, pessoa que teve importância fundamental na formação e performance musical de Augusta. Era figura de proa do contexto musical baiano na primeira metade do séc. XX. Foi pianista, compositora e maestrina. Formou-se pelo Instituto de Música da Bahia, onde veio ocupar o quadro docente dessa Instituição. Animou e incentivou todos que foram seus alunos, em especial a Augusta Socorro Rodriguez Martinez Hagge. Promoveu concertos. Viveu 80 anos. Faleceu em 1962. Foi mestra de três gerações, liderou a educação musical durante sessenta anos, e destacou-se por ser a primeira mulher a empunhar uma batuta e a reger orquestras, bandas de música e coros. Colaborou em jornais e revistas com crítica e história da música. Compôs inúmeras peças musicais. Falei da eminente mestra para realçar a importância que teve na formação musical de Augusta que, mesmo carente de opções na época para se aprender musica ela foi a pioneira, desbravando o mundo da música e seu ensino tão carente, naquele contexto.

Augusta teve sua formação inerente a sua função de professora de música ao concluir o Curso de Educação Musical, na Escola de Música da Bahia. Após a realização do curso submeteu-se a concurso para professora de Música do Estado e ali permaneceu até aposentar-se. Mesmo trabalhando no Estado nunca deixou de ter alunos particulares, ensinando música e o instrumento acordeon. Principiou seus estudos musicais pelo piano, mas quando conheceu o acordeon dedicou-se e ingressou na Academia de Acordeon Regina, do Prof. José Bonito Colmenero, tendo sido presenteada com o seu primeiro acordeon pelo irmão Militino, devido demonstrar habilidade em tocar o instrumento. De aluna nesta Academia credenciou-se como professora, ganhando seu primeiro emprego e aí permaneceu por oito anos.

O casamento de Augusta com Raynal aconteceu em 22 de dezembro de 1956. Logo depois de casada foram morar no Município de Ipiaú, mas permaneceram lá por apenas um ano. Residindo em Salvador no bairro de Baixa de Quintas, viveram aí por longo tempo onde nasceram seus filhos Scheyla, Raynal, Simone e Augusta. Cada um apresentou aptidões musicais. Scheyla tocou piano e acordeon, hoje participa do coral da Igreja N. S. Aparecida, e expressa: “Agradeço a Deus por ter me dado e desenvolvido, através da minha mãe, o dom da musicalidade”. Raynal tocou bateria e saxofone. Hoje canta na Igreja de Nossa Senhora Aparecida e diz: “ Agradeço a Nossa Senhora pela família que tenho e pela pessoa que sou.” Simone enveredou pelo ballet e fala: “me considero privilegiada pela vivência no ambiente artístico musical. Isso tudo agradeço à professora Augusta, minha mãe”. Augusta, filha mais nova, a quem chamamos carinhosamente de Augustinha, como sua irmã dedicou-se ao ballet e dança espanhola. Relatou: “Fui crescendo com a arte, através da minha mãe. Foi um importante complemento da minha educação e me sinto realizada e grata a Deus pelo o que sou! ”. Como se constata por estes depoimentos a família esteve e é toda envolvida com a música, graças a matriarca, que hoje vê o reflexo fruto da educação implantada por ela e construída também ao lado de Raynal, seu esposo extremoso e amoroso pai.

Afeiçoada e apaixonada pela música era versátil na área, não só ensinava acordeon, era regente de coral, dirigente de espetáculos e concertos, de grupos artísticos e de dançarinos, exaltando o folclore, a cultura genuína baiana afrodescendente, as danças típicas do período junino e inventiva de coreografias que faziam parte nas apresentações. O evento artístico de maior realce e repercussão foi “A Dança através dos Países”, reuniu o maior número de alunos, que eram os figurantes. Augusta se notabilizava pela maneira genuína e humana que atraia e levava os alunos a dedicar-se e tomar gosto pela música. Conceição de Maria Estevam, em seu livro, dá esse testemunho: “Quero demonstrar o significativo papel da música no desenvolvimento humano, falando por si e também por vários amigos e que têm esta arte como âmago de sua vida. Nunca deixei de colocar a música no meu viver, e até na própria rotina profissional. A música está em mim, em minha vida e em minha alma”. Prossegue: “ Com a música eu nasci, com ela me criei e com ela morrerei, na certeza que deixarei um legado para meus filhos e netos, de uma inteligência imprescindível ao desenvolvimento cognitivo, emocional e social, que proporciona, acima de tudo, a autorrealização. ” O sentimento expresso pela aluna por si só denota a importância da música em sua vida e nos seus demais colegas estimulados pela mestra Augusta, que não se limitava a ensinar o instrumento como ação robótica mas extrapolava nos detalhes importantes para os alunos, no tratamento e comportamento que deviam dispensar ao instrumento acordeon : postura do corpo e do instrumento, como utilizar, tocar e transportá-lo, posição dos braços e pernas, cuidados para conservá-los e penetrava nas raízes da alma do sentimento personalizado de cada aluno, o que a fazia uma educadora completa. O seu ensino atingia a catarse do verdadeiro ato educativo, a ”práxis”.

Augusta ensinou no Colégio Antônio Calmon e na Escola Parque. Esta escola tinha como Diretora Carmem Teixeira, irmã do emérito e grande educador Anísio Teixeira, referência do bom ensino no Estado da Bahia. Aí permaneceu até a sua aposentadoria em 1994. Aposentada e sem muito o que fazer, pois a vida dinâmica que levava deu uma parada, Augusta resolveu dar uma volta por cima e tentar novas experiências. Ingressou na Faculdade da Terceira Idade animada pela colega Angelina que já frequentava a Universidade. Essa atividade permitia-lhe socialização e ocupação de seu tempo. Foram 20 anos, segundo ela, “foram dias maravilhosos”. Vinte anos se passaram, preenchidos com atividades próprias da idade, viagens pelo Brasil, Europa e América Latina, além de visitas a Instituições, praças, clubes, hospitais etc. Participou de Congressos, de palestras, do coral “ Anos Dourados”, pertencente a Ordem Terceira de São Francisco”, entre outros.

Em 14 de abril de 2019, morria seu grande amor Raynal, deixando-a abalada e saudosa, guardando as lembranças eternas do tempo vivido e do grande esposo, pai amoroso e dedicado. Com ele constituiu uma linda família que a acolhe e a cerca de amor e carinho, amenizando a solidão natural própria do ocaso da vida. Na última vez que estive em Salvador, no dia 26 de novembro de 2024, fui visitá-la de surpresa. Encontrei-a sentada em uma cadeira, com dificuldades para andar, mas sem se queixar. Nos recebeu com o sorriso no rosto como dissesse para mim, valeu a pena viver e chegar até aqui. Falou do livro de sua ex-aluna que iria homenageá-la e convidou a todos para o lançamento.

Não fui ao lançamento do livro por compromissos já assumidos, mas quando sai daquela visita à minha tia tão querida, eu prometi a mim mesma, também irei homenageá-la fazendo uma crônica que a retratasse, pois nessa altura da vida vim conhecê-la mais profundamente e admirá-la pelo ser humano que é. A leitura deste livro muito me sensibilizou. Agradeço a autora, como sobrinha da homenageada, o que me fez orgulhosa de tê-la como tia.

Emília Maria Dórea Gonçalves, amiga da Conceição, manifesta-se: “A música tem o poder de me transportar e tocar a minha alma. Como dizia a minha professora: ” Céu, Água e Terra desaparecem, só a música permanece”. Foi com esse poder que Augusta sensível a ele pôde transformar a vida de centenas de seus alunos, adotando processos didático metodológicos do ensinar-aprender, empregando o amor, e assim construiu gerações. Utilizou a música como ferramenta que toca de perto ao coração das pessoas, fazendo-as sentir que vale a pena viver. E isso a mestra Augusta faz muito bem. Conceição de Maria Estevam converte sua obra como reconhecimento a essa postura da mestra Augusta, hoje com 90 anos, que a fará imorredoura pelos ensinamentos recebidos e irão reverberar pelas novas gerações que não tiveram o prazer de conhecê-la, mas que vão sentir nos acordes musicais daqueles que em memória foram sujeitos de sua aprendizagem. Conceição, Parabéns pela bela Obra!

Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP

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